Num mês em que o presidente do Governo garantiu não interferir no domínio do religioso e na vida da Diocese, quisemos saber se as relações entre Igreja e o poder político na Madeira são de facto equidistantes. O 'Raio X', hoje assinado por José Luís Rodrigues, retrata momentos de cumplicidade que devem dar lugar à cooperação exigente.
Muitas vezes os sentimentos e os pronunciamentos de muitos responsáveis católicos vão no sentido das políticas de direita, mesmo que o Evangelho esteja mais à esquerda e Cristo tenha sido um verdadeiro «revolucionário», um lutador contra a opressão dos mais fracos e das vítimas da religião e da política. Deve ter sido por isso que Nietzsche sentenciou que Cristo fez um Evangelho e a Igreja Católica fez um (des)Evangelho.
O teólogo Leonardo Boff disse-o com toda a clareza: «A Igreja sempre fez política, pois está na sociedade. Mas fez política de direita». A realidade ilustra com toda a clareza esta constatação, sempre que algumas figuras da Igreja, nomeadamente, os bispos e cardeais em funções, tomam partido falando ou calando, sempre por partidos de direita. Entre nós temos tido exemplos destes que sobejam. Os ditadores ditos profundamente católicos souberam bem aquietar a Igreja para levarem adiante as suas atrocidades. As ditaduras de esquerda perseguem a religião e ponto, daí raras vezes terem sido acarinhadas pelas Igrejas.
A Igreja da Madeira, após o 25 de Abril de 1974, é caso que merece um estudo aturado, precisamente por ilustrar claramente o que acabamos de afirmar. Sucessivos governos de direita, sucessivos apoios, com momentos mais óbvios e noutras ocasiões embora de forma mais velada, mas sempre tendenciosamente a cair para o apoio mútuo com toda a clareza. Por isso, a grande parte do tempo da história da «Madeira Nova» foi um escorreito passeio, sem atrapalho de parte nenhuma, muito menos da Igreja, que se limitava à linguagem hermética do amor e da fé dentro das suas portas e sempre para os mesmos. Daí que a alternância, o bem maior de qualquer democracia, na Madeira nunca foi experimentada. Não digo que toda a responsabilidade seja da Igreja, mas não esqueçamos que terá uma boa quota parte de responsabilidade.
Antes de me adiantar no «raio x», quero clarificar que se faço esta leitura e se a realidade a comprova, não pretendo dizer que estaria bem se tal opção fosse ao centro ou à esquerda. A equidistância partidária da Igreja deve ser o que se espera, aliás, até porque a lei assim a consagra e a doutrina da Igreja Católica é bem explícita quanto a essa equidistância.
A prática torna-se muito difícil quando a realidade se impõe. Por isso, não quero dizer que cada membro da Igreja, mesmo que tenha menos ou mais responsabilidades dentro da Igreja Católica, faça os seus pronunciamentos sempre em função dos mais fracos, dos pobres e dos mais necessitados de ajuda material ou outra. Até podem fazer tais pronunciamentos em «defesa» da direita num determinado momento se essa direita aplica medidas e políticas que vão ao encontro das pessoas em geral, particularmente, as mais vulneráveis. O bom senso é a medida.
Mas, a meu ver a justiça deve ser o barómetro que orienta os passos de quem é católico, esteja à esquerda, ao centro ou à direita. Costumo dizer, quando redutoramente me catalogam de «vermelho» ou «comunista» ou que sou de «esquerda», que Deus criou-me com uma direita e uma esquerda e com o coração entre uma e outra. O famoso bispo brasileiro D. Hélder da Câmara dizia: «Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista». Nada de anormal, já conheço e bem o chavão.
Na relação entre poder político e a Igreja Católica da Madeira nos últimos 45 anos, tivemos ataques aos mais fracos, com facilidades e privilégios bem determinados para os poderosos. Ao lado disso, vimos e vemos que se disfarça com política de caridade baseada na distribuição de sopas e o esquecimento dos bens públicos que beneficiariam toda a sociedade. Os milhões derramados em betão religioso e no ensino privado, cujo grosso desta realidade está bem conotada com o catolicismo, traz à luz do dia uma tenebrosa cumplicidade que sacia os poderes religiosos e temporais. Um banquete bem servido por ambos, mas que sobrecarrega a vida dos contribuintes.
Estes exemplos não são o caminho da justiça e do bem comum. Esta política merece ser denunciada e posta a nu, porque violenta os direitos das pessoas e insulta a sua dignidade. Alguns altos responsáveis católicos nutrem simpatia pela política que vai neste sentido. E até defendem que, seja lá que partido for a governar, o seu dever é colaborar ou estar ao lado de quem governa. Mas não sendo esta a vertente evangélica, perde-se depois a liberdade para denunciar as políticas tendencialmente viradas para as classes mais abastadas da sociedade e os prejuízos arrastam-se gravemente para os mais vulneráveis.
Por isso, ainda alguns hoje alimentam o sonho de que deviam surgir partidos católicos. Não deve ser este o caminho. Em todos os partidos devem estar cristãos católicos ou outros que defendam os interesses gerais, não os interesses católicos ou outros nem muito menos os interesses dos grupos económicos que desejam dominar tudo.
Mas, vamos ao presente e ao futuro. O desejo deve ser que qualquer partido político tenha católicos, que seguem o ideal de Jesus de Nazaré, defendem os frágeis, porque os pobres são o centro da sua ação e dos seus discursos. Não se inibam de promover políticas para o bem de todos. Jesus não veio angariar cristãos como se fossem adeptos, mas veio dizer a todas as pessoas que sejam solidárias, amigas, compassivas, vivam com ética, com seriedade, com todos os valores humanos e espirituais que fazem crescer uma sociedade na alegria e na festa da dignidade. Esta é a vontade de Deus e o bem do reino que Jesus anunciou e começou. Esta é a política cristã/católica que se deseja para todas as sociedades. Toda a política com interesses focalizados, sem opção clara pela liberdade dos cidadãos, violadora dos Direitos Humanos, que não promova a igualdade, a tolerância e o respeito pelas diferenças, mesmo que travestida de profundamente católica, acaba sendo perigosa. A qualquer Igreja, compete denunciar os caminhos que enveredem no sentido contrário desses ideais.
Assim, desejamos para a Madeira uma relação entre poder religioso e político, que seja livre, sem amarras e fora dos interesses de uma parte e de outra, em favor de todos e sempre no caminho da justiça. A colaboração é desejável, mas nenhuma parte deve abdicar do seu dever, a governação deve gerir os bens comuns com responsabilidade, honestidade e seriedade em prol de todos os cidadãos, as igrejas devem estar atentas e reclamarem quando as ações políticas não estão dentro desses parâmetros. Quem deseja uma Igreja remetida ao mofo das sacristias está enganado, e contribui seriamente para a pobreza de uma sociedade onde cada cidadão e instituição devem cumprir a sua missão em prol do crescimento e desenvolvimento da sociedade toda.
Até pode interessar (não devia) ao poder político o marasmo da Igreja madeirense, quando se alimenta do devocionismo permanente ou se gasta em festas em cima de festas, para adormecer o povo. Embora isso existindo, é preciso mais movimento que estabeleça diálogo com a cultura, para que as pregações tenham luz, carne, vida concreta dos homens e mulheres do nosso tempo. Daí que se deva requerer da Igreja atenção a tudo o que se move na vida da sociedade, a começar por aquela realidade que mexe com a existência de todos nós a vida política, a governação.