Ao DIÁRIO têm chegado, nos últimos meses, rumores de descontentamento na Função Pública. Muitos falam à boca pequena mas ninguém dá a cara. Decidimos investigar e fazer a leitura do que se passa, com o contributo de Carlos Vares, um dos convidados para o ‘Raio X’, para a área da política e da estratégia. De hoje em diante, a qualquer dia ou hora, especialistas em diversas áreas passam a analisar e avaliar os factos e os dados tornados públicos e os que se comentam em surdina. O ‘fact check’ a uma promessa eleitoral ou a um discurso político, a um dado ou cenário deixa de ter dia certo.
É generalizado o descontentamento dos funcionários públicos em relação a aplicação do SIADAP - sistema integrado de gestão e avaliação do desempenho na Administração Pública, estabelecido pela Lei n.º 66-B/2007, adaptado à Região pelos Decretos Legislativos Regionais n.ºs 27/2009/M e 12/2015/M.
Era objectivo da Lei criar um mecanismo de contenção de despesa, travando as progressões automáticas nas carreiras. Adivinhando contestações, “pintou-se” a dita como um mecanismo justo para distinguir e premiar os melhores funcionários com uma progressão na carreira.
Acreditando no objectivo nobre do legislador, a aplicação, no entanto, gerou contornos levianos e imorais. A adaptação da Lei à Região foi, em minha opinião, infeliz e com segundas intenções. Em muitos artigos do Decreto-Lei, foram banidos pormenores para permitir a liberdade de interpretação, resultando um emaranhado de artigos de interpretação e aplicabilidade subjectiva e duvidosa, tudo no secretismo de alguns e na ignorância da maioria dos funcionários.
Na avaliação dos trabalhadores e dirigentes, são definidos objectivos confidenciais entre o Avaliador e o Avaliado, normalmente, nenhum funcionário, mesmo trabalhando na mesma equipa e organização, conhece os objectivos (e grau de dificuldade) dos outros. A confidencialidade nos métodos de avaliação cria suspeição sobre o “benefício” a alguns trabalhadores em detrimento de outros. Imagine que se entrega a um Técnico Superior o difícil objectivo de conceber um projecto de execução complexa e a outro, o simples preenchimento de uma tabela Excel. Como distinguir pela nota, a dificuldade, a aptidão e os conhecimentos colocados na execução do trabalho? No entanto, o trabalho mais fácil pode sair imaculado e o outro talvez não. Os funcionários devem esquivar-se dos trabalhos difíceis e a entidade faz outsourcing?
Se no caso dos Técnicos Superiores pode haver desequilíbrios, no dos Dirigentes Intermédios, os objectivos até podem ser mais estranhos, como no caso real de uma Direcção Regional onde o “desafio” dos Dirigentes Intermédios é a simples elaboração de um Relatório de Actividades, como se isso fosse execução de objectivos no serviço. Como a unidade de medição dos objectivos é cega, os funcionários são avaliados quantitativamente pelos objectivos que cumpriram ou falharam, isto é, sem medir qualitativamente os contributos destes para a Organização. Existe uma análise quantitativa mas ignora-se a relevância do trabalho.
A Lei foi sucessivamente alterada, beneficiando sempre os Dirigentes da Função Pública em detrimento dos trabalhadores. Exemplo: a imposição de limites na avaliação apenas aos trabalhadores, onde 25% podem ter a classificação de “Relevante” e destes apenas 5% podem ser “Excelentes”, em contraponto, nos Dirigentes não existem quotas.
Em organizações públicas de menor dimensão, a avaliação dos Dirigentes Intermédios é efectuada por um Conselho Coordenador de Avaliação constituído pelos próprios Dirigentes. Julgam e analisam em causa própria, não é de estranhar que a maioria obtenha sempre a classificação máxima de “Relevante” e alguns com “Excelente”. Por esta razão, estatisticamente, a maioria dos “Excelentes” é entregue aos Dirigentes Intermédios ficando os trabalhadores excluídos do mérito máximo.
Em algumas organizações públicas regionais, ao abrigo da confidencialidade da referida Lei, muitos Conselhos Coordenadores de Avaliação nem tornam atempadamente público os requisitos que regulamentam a avaliação curricular e, mais grave, a lista dos trabalhadores que obtiveram “Excelente” e “Relevante” não é pública se isso representar uma mudança de posição remuneratória, como a Lei exige.
As incongruências prosseguem. A interpretação da Lei permite que um Dirigente Intermédio opte pela ponderação curricular, ou seja, basta ao dirigente requerer e o Conselho avalia. O candidato submete o seu curriculum e, caso cumpra os parâmetros da avaliação, definidos pelo próprio Conselho, é-lhe atribuído o desempenho de “Excelente”. Não se avalia o Dirigente pelo desempenho do biénio ou pelo SIADAP-2 mas sim por um curriculum que, pouco ou nada, pode representar para o serviço onde pertence. Mais grave, o dirigente entra no número das quotas definidas para os trabalhadores, retirando um lugar de mérito a estes.
Se isto é imoral, o que dizer do facto de um Dirigente estar em Comissão de Serviço noutra unidade orgânica mas requerer avaliação na origem? Ou seja, é Dirigente noutro local da Administração Pública mas o seu desempenho, por avaliação curricular, é feito pelo serviço de origem onde não cumpriu os objectivos dessa organização. Na opinião de alguns juristas, esta actuação viola sistematicamente a intenção do legislador em premiar o desempenho dos trabalhadores da Função Pública, uns são avaliados pelo que trabalham e outros por uma espécie de honoris causa.
Os contornos de indecência não terminam aqui. Surpreendentemente, a Lei permite que o Dirigente, nos anos subsequentes, possa pedir para manter a nota dos anos anteriores. Na prática, o Dirigente poderá manter a nota de “Excelente” obtida por ponderação curricular para sempre até à sua reforma, mesmo que nos anos subsequentes não faça “nenhum”.
A tudo isto, junte-se o facto da actividade sindical contar também para a avaliação curricular, compreende-se o silêncio e a conivência dos sindicatos perante a aplicabilidade desta Lei.
Nestas condições, um Dirigente pode progredir na carreira de 4 em 4 anos, enquanto os restantes trabalhadores da carreira geral da Função Pública, ficam limitados pelas quotas dos “Relevantes” e “Adequados” e têm que esperar, em média, 10 anos para progredir, o que tudo somado daria mais de 100 anos para chegar ao topo da carreira.
Embora descontentes, a maioria dos funcionários públicos não exercem o seu direito de reclamação, por medo de serem depois lesados pelo Avaliador. Em casos mais graves, são até aconselhados pelos próprios Avaliadores a não reclamar, com promessas de justiça na próxima avaliação. É caricata a bola de neve da injustiça.
Que o próximo Governo da República altere o SIADAP, tornando-o justo e coerente e que, na Madeira, se abandone o dúbio que permite a liberdade de recriar e recrear-se com a Lei conforme o interesse e a maldade partidária.